Na primeira votação de um projeto polêmico pelo novo Congresso, o governo conseguiu aprovar a Super-Receita, resultado da fusão entre as estruturas de fiscalização e arrecadação dos ministérios da Fazenda e da Previdência Social, que só depende agora da sanção do presidente Lula.
A Câmara dos Deputados derrubou ontem a maioria dos artigos incluídos no texto pelo Senado para limitar os poderes do novo órgão.
Na primeira votação de um projeto polêmico pelo novo Congresso, o governo conseguiu aprovar a Super-Receita, resultado da fusão entre as estruturas de fiscalização e arrecadação dos ministérios da Fazenda e da Previdência Social, que só depende agora da sanção do presidente Lula.
A Câmara dos Deputados derrubou ontem a maioria dos artigos incluídos no texto pelo Senado para limitar os poderes do novo órgão. Com sua base de apoio dividida, o Palácio do Planalto foi derrotado, porém, na tentativa de derrubar a modificação no texto mais desejada pela oposição -um dispositivo que, no entender do fisco, facilita a transformação de assalariados em pessoas jurídicas, com perdas para a arrecadação.
A Super-Receita chegou a funcionar entre julho e novembro de 2005, criada por uma medida provisória que não foi aprovada pelo Congresso no prazo de 120 dias estipulado pela Constituição. Incluída em um pacote batizado, na época, de “choque de gestão”, a proposta foi atacada por corporações do setor e foi vista com desconfiança por parte do empresariado.
Em termos simples, o objetivo principal da Super-Receita é aumentar a arrecadação de tributos sem a necessidade de aprovar no Congresso elevações das alíquotas dos impostos e contribuições sociais -o lobby contra o aumento da carga tributária se tornou um dos mais poderosos do Congresso nos últimos dois anos.
Pela argumentação oficial, a nova estrutura dará mais eficiência ao fisco, uma vez que um mesmo corpo técnico, trabalhando com uma base de dados comum, será encarregado de fiscalizar o pagamento tanto da contribuição previdenciária como dos demais tributos.
Hoje, a contribuição ao Instituto Nacional do Seguro Social é arrecadada pela Previdência, cujos dados são administrados pela Dataprev. Os demais tributos federais são de responsabilidade da Fazenda, que conta com os serviços informatizados do Serpro. Pelos cálculos da Receita, as duas estruturas só estarão plenamente integradas dentro de, pelo menos, dois anos.
A unificação dos fiscos é recomendada pelos organismos multilaterais de orientação liberal -casos do Banco Mundial e do FMI (Fundo Monetário Internacional). Para contornar a resistência dos partidos mais à esquerda, o projeto da Super-Receita passou a explicitar que os recursos da Previdência não seriam utilizados em outros gastos públicos.
Ainda assim, o risco de perdas para os cofres do INSS foi um dos principais argumentos dos adversários da Super-Receita, em especial o Unafisco, sindicato dos auditores da Receita Federal.
Uma das carreiras mais poderosas e bem-remuneradas do Executivo, os auditores temem um “trem da alegria” -generalização de poderes e benefícios a outros servidores- com o novo órgão. Os fiscais da Previdência e os técnicos da Receita, agora chamados de analistas tributários, apóiam o texto.
Disputa política
Mas o que mais atrapalhou a aprovação da Super-Receita foi mesmo o acirramento da disputa política entre governo e oposição -o texto foi lançado no auge do escândalo do mensalão. Depois da derrocada da MP, a proposta foi convertida em projeto de lei e tramitou lentamente no ano eleitoral de 2006.
No Senado, onde o Planalto não tem maioria estável, o projeto só passou graças a um acordo com PSDB e PFL, que puderam incluir no texto uma série de artigos destinados, segundo os partidos, a proteger os contribuintes. Fixava-se, por exemplo, prazo máximo de 24 meses para as operações de fiscalização da Super-Receita.
Devido às alterações, foi preciso nova votação pela Câmara, a terceira sobre o tema. Numa vitória do lobby dos governadores, os deputados mantiveram no texto o parcelamento por 20 anos das dívidas dos Estados com o INSS.
Projeto beneficia “empresa de uma só pessoa”
A Receita não poderá mais, como acontece hoje, desfazer o contrato entre uma pessoa jurídica formada por um profissional -que, na avaliação dos auditores fiscais, desempenha funções típicas de um assalariado- e a empresa para a qual presta serviços.
Pela regra, aprovada ontem pelo Congresso, o vínculo trabalhista, nesses casos, terá de ser estabelecido antes por um juiz, o que tornará mais lenta a ação da fiscalização.
Em sua terceira vitória legislativa contra o fisco nos últimos dois anos, o lobby pela regularização dos profissionais que prestam serviços na condição de pessoa jurídica acabou sendo o protagonista da votação final da Super-Receita.
Por 304 votos a 146, os deputados ratificaram o dispositivo incluído no texto pelo Senado que, na prática, tira do fisco o poder de intervir quando considerar que um contrato de prestação de serviços encobre uma relação trabalhista.
Para a Receita, a contratação de profissionais liberais -médicos, contadores, jornalistas e advogados, por exemplo- que constituem as chamadas “empresas de uma só pessoa” se tornou uma espécie de reforma trabalhista disfarçada, com perdas para a arrecadação.
Dependendo da faixa de renda, a tributação sobre uma pessoa jurídica é inferior à incidente sobre um trabalhador com registro em carteira. Por isso, especialmente nos cargos que exigem maior qualificação, a constituição de pessoa jurídica (PJ) pode ser uma alternativa vantajosa às exigências da legislação trabalhista.
Os defensores da medida -caso da Confederação Nacional de Serviços e da Ordem dos Advogados do Brasil- dizem que é preciso evitar abusos dos auditores, cujo poder não pode se sobrepor ao do Judiciário. Afirmam que os contratos de prestação de serviço são livres e voluntários entre as partes.
Aponta-se ainda que a quantidade de encargos sobre a folha de salários onera as empresas e desestimula a contratação com carteira assinada.
Tema mais debatido do dia, a emenda rachou a base aliada ao Planalto, a ponto de o líder do governo, Beto Albuquerque (PSB-RS), ter de liberar o voto de seus comandados durante a tentativa de derrubar a proposta -que recebeu apoio quase unânime de siglas como PTB, PMDB, PP e PR, além dos oposicionistas PSDB e PFL
Os partidos mais à esquerda repetiram a tese de sindicalistas e das corporações ligadas ao fisco, segundo a qual o texto poderá congestionar a Justiça do Trabalho e dificultar o combate à sonegação.
Por isso, segundo os governistas, a emenda deve ser vetada. “Vou propor o veto [à emenda]”, afirmou o ministro Guido Mantega (Fazenda).
Nesse caso, existe a hipótese da edição de uma medida provisória para disciplinar, em outros termos, a ação da Super-Receita em relação aos prestadores de serviços.
Para os defensores da emenda, não existe risco para a fiscalização, que continuará sendo feita pelos auditores fiscais e do trabalho. Por esse raciocínio, o combate ao sonegador conta com as penas previstas em lei e não pode justificar a restrição de direitos dos demais contribuintes.
A disputa entre o fisco e o lobby empresarial começou no início de 2005, quando o governo tentou elevar a tributação sobre prestadores de serviços e foi derrotado no Congresso.
Na época, a Receita argumentou que uma pessoa jurídica com renda mensal de R$ 50 mil pagava 11,33% aos cofres públicos, com IR, CSLL, PIS e Cofins. Já um assalariado de mesma renda arcaria com um IR em torno de 26%.
Ainda naquele ano, os parlamentares aprovaram um artigo, proposto por empresas de comunicação, que explicitou o entendimento de que profissionais liberais podem ser tributados como pessoas jurídicas mesmo que não sejam empregadores. Surpreendentemente, Lula contrariou a Receita e sancionou o texto.