Entre o Silêncio dos Decretos e o Barulho dos Navios: A História Não Contada do Despachante Aduaneiro Brasileiro (e que todos precisam conhecer)
Por Marcelo de Castro Ferreira – maio de 2025
As conclusões que aqui se apresentam são fruto da análise criteriosa de dezenas de atos legais contidos na Collecção das Leis do Império do Brasil, especialmente entre os anos de 1808 e 1850, além do estudo de documentos oficiais do Ministério da Fazenda, registros do Tesouro Nacional e fontes doutrinárias contemporâneas.
Esta pesquisa interpreta juridicamente o papel institucional do despachante aduaneiro, apresentando uma narrativa técnica, histórica e normativa da evolução do cargo no contexto da formação do Estado aduaneiro brasileiro. Trata-se de uma construção analítica baseada em fontes primárias e doutrina especializada, com destaque para os conceitos de território aduaneiro conforme expostos por Ricardo Basaldúa.
Essa iniciativa conta com o apoio institucional da Federação Nacional dos Despachantes Aduaneiros – Feaduaneiros, entidade que atua de forma permanente na valorização da categoria profissional, no resgate de sua história e na consolidação de um marco legal que reconheça o papel estratégico do despachante aduaneiro no comércio exterior brasileiro.
A Feaduaneiros acredita que fortalecer a memória e os fundamentos jurídicos da profissão é essencial para garantir sua legitimidade e continuidade, sobretudo em um cenário de constantes transformações no comércio internacional e na administração pública.
A chegada da Corte portuguesa ao Brasil em 1808, liderada pelo Príncipe Regente Dom João, foi um dos mais notáveis movimentos geopolíticos do início do século XIX.
Contrariando as caricaturas que o tratavam como indeciso ou passivo, Dom João demonstrou ser um estrategista de rara habilidade. Ao optar pela transferência da Corte para o Brasil, evitou o domínio de Napoleão sobre a totalidade do império português, assegurando a continuidade da autoridade régia em território aliado.
A carta escrita por Napoleão Bonaparte à Imperatriz Josefina, na qual reconhece que Dom João foi o único monarca europeu a lhe escapar estrategicamente, é prova inequívoca do êxito dessa manobra diplomática e logística.
A abertura dos portos às nações amigas, por meio do alvará de 28 de janeiro de 1808, rompeu com o modelo do exclusivo colonial e lançou as bases para a constituição de um território aduaneiro. Ricardo Basaldúa conceitua o território aduaneiro como um espaço jurídico delimitado onde se aplicam, de maneira uniforme, as normas fiscais, administrativas e comerciais relativas ao ingresso e à saída de bens.
O Brasil, ao cumprir os requisitos mínimos – alfândegas organizadas, normas tributárias, controle documental e jurisdição fiscal própria –, inaugura formalmente esse estatuto em 1808.
Um ano após a abertura dos portos, Dom João institui, por meio do Decreto de 7 de junho de 1809, o cargo de Despachante das Embarcações do porto do Rio de Janeiro. O primeiro nomeado foi Aleixo Paes Sardinha.
A nomeação foi pessoal, autorizada pelo Príncipe Regente, e já indicava o caráter funcional do cargo: representar os interesses dos comerciantes junto à recém-estabelecida estrutura alfandegária. Ainda que sua remuneração fosse privada, sua função era pública: atuava como auxiliar do Estado na conformidade e fiscalização documental das operações comerciais.
Desde o início, sua atuação envolvia três dimensões fundamentais: representação técnica junto às repartições públicas; preparação e entrega dos documentos exigidos pela legislação aduaneira; e acompanhamento físico da mercadoria desde a chegada ao porto até sua liberação. Essa atuação híbrida – pública em sua finalidade, privada em sua origem, conferiu ao despachante um status inédito: não era funcionário, mas agia com fé pública e responsabilidade legal perante a administração fazendária.
Entre 1811 e 1832, a atividade dos despachantes passou a ser regulamentada com crescente precisão. O Decreto de 27 de maio de 1811 exige que os despachos sejam feitos por despachantes abonados, cujos bilhetes fossem registrados no ato. Em 1816, uma portaria real determina o uso obrigatório de bilhetes numerados, e em 1818, outra portaria institui o modelo de bilhete duplo, sendo um entregue à alfândega e outro ao transportador. Em 1819, o Alvará Régio exige a comprovação do pagamento dos tributos antes da entrega das mercadorias. O Regulamento de 1820 detalha os dados obrigatórios nas declarações, como origem, peso e valor dos bens.
O Decreto de 19 de abril de 1826 estabelece prazos para os despachos, define penalidades e amplia as obrigações documentais dos despachantes. A Lei nº 26, de 24 de outubro de 1832, reformula a estrutura das alfândegas e institucionaliza o controle formal da função. O grande marco, no entanto, ocorre em 1836, com o Regulamento de 22 de junho: cria-se a matrícula oficial dos despachantes, classifica-se a profissão em graus (gerais e especiais), proíbe-se o exercício por terceiros não habilitados e estabelece-se a obrigatoriedade de renovação periódica dos registros.
O Regulamento de 23 de novembro de 1840, já sob Dom Pedro II, padroniza os procedimentos para habilitação e licenciamento dos despachantes. Em 1844, o regulamento da Fazenda define as categorias da profissão e cria os livros de matrícula com registros de habilitação.
O Decreto de 14 de outubro de 1845 introduz a classificação dos despachantes por ordem. Em 1846, uma decisão do Tribunal do Tesouro Nacional isenta os despachantes do pagamento de emolumentos para as patentes, reforçando seu caráter funcional e não honorífico.
O Regulamento de 15 de outubro de 1847 exige o arquivamento sistemático das vias dos despachos, formalizando o controle de rastreabilidade documental. A consolidação normativa do despachante aduaneiro reflete um modelo brasileiro de cooperação público-privada. Antecipando os dispositivos modernos do SAFE Framework da OMA e do Acordo de Facilitação do Comércio da OMC, o Brasil desenvolveu, desde o século XIX, uma estrutura que reconhece a importância dos operadores técnicos privados para a eficácia da função fiscal. O despachante aduaneiro é, assim, um arquétipo do operador autorizado, exercendo a representação técnica com responsabilidade legal.
Num mundo que caminha para a automação total, a história do despachante aduaneiro reafirma o valor da presença humana tecnicamente qualificada. Durante a pandemia da COVID-19, por exemplo, foram esses profissionais que viabilizaram, sob coordenação estratégica com a administração pública, a chegada de vacinas e insumos em tempo hábil, superando gargalos logísticos e barreiras sanitárias com agilidade documental e expertise normativa.
A trajetória do despachante aduaneiro brasileiro, desde Aleixo Paes Sardinha até os profissionais da era digital, confirma uma lição institucional: o Estado eficiente é aquele que integra saber técnico privado em sua engrenagem pública.
O exemplo de Dom João VI, que venceu Napoleão com estratégia e previsibilidade, é o mesmo espírito institucional que sustenta a figura do despachante. Valorizá-lo não é um favor, é reconhecer uma construção doutrinária sólida, funcionalmente eficiente e historicamente legítima. O despachante aduaneiro é, desde 1809, a primeira ponte entre o Estado e o comércio. E continua sendo.
Marcelo de Castro Ferreira é Despachante Aduaneiro, diretor responsável pelo Marketing Institucional do SINDASP, organização sindical vinculada à FEADUANEIROS, e Head global de atividade correlata para ASAPRA. Empresário, e autor do artigo “FERREIRA, Marcelo de Castro; FAZOLO, Diogo Bianchi.