“A era Palocci não acabou, ao contrário do que anunciou o ministro Tarso Genro na posse de Lula para o segundo mandato. Ela só mudou de nome: vivemos a era Meirelles”. A fórmula do cientista político Cristiano Noronha, da Arko Advice, uma das consultorias mais influentes junto a bancos de investimento, expressa bem o recente fortalecimento do Banco Central na definição da política econômica. Por ordem direta do presidente Lula, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, fez mais do que arquivar as cobranças de cortes mais ousados na taxa de juros.
“A era Palocci não acabou, ao contrário do que anunciou o ministro Tarso Genro na posse de Lula para o segundo mandato. Ela só mudou de nome: vivemos a era Meirelles”. A fórmula do cientista político Cristiano Noronha, da Arko Advice, uma das consultorias mais influentes junto a bancos de investimento, expressa bem o recente fortalecimento do Banco Central na definição da política econômica. Por ordem direta do presidente Lula, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, fez mais do que arquivar as cobranças de cortes mais ousados na taxa de juros. Ele veio a público sustentar que a atuação do BC é correta e adequada para o País, acompanhado pelo recém-nomeado ministro do Desenvolvimento, Miguel Jorge, para quem com o risco-país em queda e as receitas das exportações ainda em nível elevado, não se deve esperar mudanças no câmbio a curto prazo.
Miguel Jorge usou das metáforas futebolísticas tão ao gosto de Lula para descartar críticas à política de câmbio, comuns na gestão do antecessor Luiz Fernando Furlan: “Quem estiver no time e não se adaptar à tática, o treinador muda”. Máxima seguida à risca por Guido Mantega, que aceitou o pedido de demissão do secretário de Política Econômica, Julio Sergio Gomes de Almeida, depois que este abriu o verbo no Estado de S. Paulo, uma das bíblias da elite paulista, contra a desindustrialização e o desestímulo ao aumento de capacidade que a combinação de juros altos e câmbio baixo, para ele perversa e nociva ao país, trazia. Elegante, num estilo que contrasta com o do ex-auxiliar – que chegou a dizer que “nem arriando as calças”o governo encontraria espaço para novas desonerações tributárias numa proporção que compensasse a defasagem cambial – Mantega atribuiu a saída de Gomes de Almeida a “razões de ordem pessoal”. Podem existir, claro, e o ex-secretário queixava-se de isolamento em Brasília, mas o certo é que na véspera dizia que ficaria “o tempo que fosse necessário”. “Meu boné é do ministro Mantega”, definia. Teve de pedi-lo de volta, às pressas, e ainda assistir ao ex-chefe fazendo uma defesa enfática das virtudes das políticas monetária e cambial.
Guinada
A guinada impressiona, já que há pouco mais de dois meses o PT e os ministros supostamente mais próximos a Lula davam conta da insatisfação do presidente com a desaceleração nos cortes da taxa Selic, de 0,50 para 0,25 ponto percentual por reunião do Copom, e com a evolução do Produto Interno Bruto (PIB) do ano passado. Mantega chegou a articular a nomeação de Demian Fiocca para uma das diretorias do BC, na vaga aberta com a demissão do ultraortodoxo Afonso Bevilaqua. Isso ocorreu praticamente no mesmo instante em que o “pai da moratória” Paulo Nogueira Batista Júnior assumia a representação brasileira no Fundo Monetário Internacional (FMI) e ex-colaboradores de Antonio Palocci, como Bernard Appy e Carlos Kawall, comentavam abertamente seu desejo de deixar o governo, por temerem um descontrole fiscal.
O quadro mudou drasticamente em menos de um mês, num ritmo que lembra os desencontros da crise aérea. Dilma Rousseff, a sucessora de José Dirceu na Casa Civil, mantém-se em silêncio obsequioso sobre a política econômica, sem nem de longe lembrar os disparos verbais de ousada ex-guerrilheira com que abateu em pleno vôo a tentativa do então ministro Antonio Palocci de aumentar o superávit primário. A proposta, que convergia para o déficit nominal zero proposto pelo conselheiro informal mais influente de Lula, o ex-ministro da Fazenda Delfim Netto, não resistiu à pecha de “rudimentar” lançada por Dilma.
Agora, os tempos são outros. Dilma e Mantega até conseguiram emplacar a versão de que a margem de manobra para apoiar projetos de investimento considerados prioritários (os chamados Projetos-Piloto de Investimento, PPIs) será aumentada.
Na prática, dada a demora na definição das regras para parcerias, concessões e obras de iniciativa direta do Executivo, a Fazenda já admite que menos da metade dos 0,5% do PIB facultados pela norma do PPI serão utilizados este ano. “É muito provável, mesmo após a revisão do Produto Interno Bruto e a definição de uma meta nominal de R$ 91 bilhões para o superávit primário, que a execução orçamentária gere um saldo maior, da ordem de 3,8% a 3,85% do PIB”, prevê Carlos Thadeu de Freitas, economista da Confederação Nacional do Comércio (CNC).
Ainda assim, a dívida pública como proporção do PIB, que já caiu de 49,2% para 46,8% por força da recente revisão da metodologia das contas nacionais, cederia fortemente. Para isso, contribuiriam a inflação bem abaixo da meta de 4,5% e a redução das despesas com juros, por conta dos cortes na taxa Selic. “Num quadro como esse, em que os bons resultados alimentam-se uns dos outros, fica mais fácil de entender por que o presidente Lula fez questão de abrir a primeira reunião ministerial com a nova equipe, gestada após longo e complicado processo de negociação, dizendo que o controle de gastos é sagrado”, argumenta Cristiano Noronha, da Arko Advice.
O cientista político vai mais longe, sustentando que a condução da economia é tratada de uma forma distinta do resto do governo, sendo preservada da disputa político-parlamentar por espaço sempre que possível. “A gestão da economia, com o BC guardião da ortodoxia em primeiro plano, é um dos pontos que Lula não admite mais mexer. Isso e o Bolsa-Família. Estabilidade e rede de proteção social são os pilares que lhe garantiram a reeleição e lhe dão força política para resistir as turbulências como o mensalão ou o apagão aéreo. A descoordenação que se assiste em muitas outras áreas do governo não se repete por lá, por mais que a base governista e o partido do presidente relutem em apoiar medidas mais amargas”, explica.
Trégua
A eleição municipal está longe, os cargos de segundo escalão ainda estão vagos e as maiores correntes políticas do PT parecem ter adiado um confronto entre elas para o próximo encontro nacional, em setembro, responsável pela eleição de um novo presidente do partido. Tudo isso contribui para a trégua relativa com que a estratégia do BC é brindada, já que atenua as motivações eleitorais de muitos dos críticos mais ferrenhos. Soam de um passado distante cenas como as da ida do presidente do BC, Henrique Meirelles, ao Senado, em que destacados parlamentares governistas cobravam duramente explicações para a então recente desaceleração de 0,50 para 0,25 ponto percentual dos cortes da taxa de juros.
O senador Aloísio Mercadante chegou a propor a redução dos intervalos entre as reuniões do Copom e alertou para o fato de que os juros altos, ao estimular a arbitragem entre as taxas internas e externas, pressionavam o câmbio além da conta, desestimulando as exportações.
Convencido ou não pelas explicações do amigo Meirelles, a quem foi o autor da sondagem para integrar o governo Lula, Mercadante optou desde então por postura mais discreta. Não mudou de tática nem quando o superávit comercial finalmente começou a ceder, pelos dados de março, a primeira queda no acumulado de 12 meses desde 2001. Mantega, na Fazenda, também parece ter deixado para trás os tempos em que arriscava brincadeiras de efeito duvidoso, como a feita no lançamento do Plano de Aceleração de Crescimento (PAC), em que advertiu o colega Meirelles: “Olha, o mercado espera a queda dos juros”, citando a pesquisa Focus, do próprio BC junto a bancos nacionais e estrangeiros.
Dois dias depois do lançamento do PAC e da insinuação de Mantega, no que parecia uma resposta dirigida, cinco diretores do BC, capitaneados por Afonso Bevilaqua, diretor de Política Econômica, e Rodrigo Azevedo, diretor de Política Monetária, determinaram a desaceleração dos cortes da Selic. Mantega chegou a admitir a decepção, a Executiva do PT chegou a pôr em pauta a demissão de Meirelles, mas o presidente Lula determinou que as discussões fossem feitas internamente. Ele próprio, contudo, parecia insatisfeito com as explicações, e subiu o tom da cobrança ao BC, no que foi chamado de cerco aos falcões, os adeptos da linha dura vitoriosos à época.
PIB pré-revisão, de 2,9%, jogou lenha na fogueira
Os números preliminares do PIB de 2006 revelavam um crescimento de 2,9%, o que jogou mais lenha na fogueira. Foi preciso muita habilidade política de Meirelles e o susto da queda simultânea das bolsas em todo o mundo, deflagrado pela simples discussão de regras anti-manipulação na Bolsa de Xangai pelo Congresso do PC chinês, para que a autonomia prática do BC fosse preservada.
Meirelles obteve de Lula, explicitamente, a palavra final sobre a equipe do BC, e optou por extinguir a vaga aberta com a saída de Bevilaqua, fechando a possibilidade de que ali fosse posto um homem de confiança de Mantega.
O BC fez mais, tendo o apoio do ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, para exercer uma certa hegemonia nas decisões de política econômica. O Conselho Monetário Nacional (CMN), integrado pelos dois e mais Guido Mantega, manteve a Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP) nos 6,25% atuais, mesmo em um quadro de risco-país em níveis históricos de queda (122 pontos, pela última emissão do Tesouro no exterior, semana passada). De quebra, atendeu aos bancos e mudou o cálculo da TR, base para a remuneração da poupança.
Nas discussões com o Congresso para a aprovação do PAC, o viés ortodoxo também parece prevalecer. O ministro Paulo Bernardo, encarregado dos contatos mais cotidianos com parlamentares dentro da equipe econômica, privilegia nas conversas o limite de 1,5% para a expansão real (acima da variação do IPCA) das despesas com pessoal da União. A medida encontra resistências nas influentes representações corporativas no Congresso, da bancada sindicalista aos deputados, governistas e oposicionistas, eleitos com apoio de funcionários públicos e suas famílias. O empenho especial de Bernardo, que se recusa a fazer da medida moeda de troca, indica a força dos ortodoxos, inconcebível num governo de maioria petista sem a benção pessoal de Lula.
Preservado no cargo, Bernard Appy recebeu de Mantega a atribuição de tocar a discussão com os governadores sobre a reforma tributária. “Esse não é um sinal político tão forte quanto parece, pois como o governo depende da prorrogação da CPMF e da Desvinculação das Receitas da União (DRU) para garantir o equilíbrio orçamentário até o fim do mandato, era lógico que ele tivesse que negociar”, pondera Cristiano Noronha.
O sinal mais expressivo do fortalecimento dos partidários da retomada da agenda de reformas do Estado está no Ministério da Previdência. A Fazenda e o BC trabalhavam pela manutenção de Nelson Machado, e a maioria de seus quadros de mais influência sustenta a necessidade de novos cortes nos benefícios previdenciários. Esse ponto de vista não chegou a impor-se ao presidente Lula, disposto a testar primeiro os efeitos das medidas tomadas no primeiro mandato. Mostrou força suficiente, contudo, para convencer Lula a um rearranjo, retirando o convite feito a Carlos Lupi, do PDT, partido que negou apoio às mudanças. O escolhido, Luiz Marinho, ex-presidente da CUT, não é adepto de reformas liberais, mas admite a continuidade das medidas de gestão, como o recadastramento dos aposentados e o corte de benefícios pagos irregularmente. Além disso, já demonstrou em outras ocasiões sua disposição em encaminhar propostas que resultem da discussão de foros em que empresários e trabalhadores tenham representação equânime, como o Forum Nacional da Previdência incentivado por Lula.
EX-diretor do BC destaca quadro internacional favorável
Nem só de razões internas, contudo, se fez a virada pró-BC. A conjuntura internacional favorável teve papel decisivo, como só acontece em uma economia vulnerável a turbulências externas, ainda que em grau muito inferior, por exemplo, ao da crise da dívida de 1982 ou da maxidesvalorização que substituiu a âncora cambial pelo regime flutuante, em 1999″A crise chinesa mostrou-se pouco mais que um soluço, o problema das empresas de hipoteca parece circunscrito às fronteiras americanas, a temida queda de cotações das commodities agrícolas e minerais, no rastro da desaceleração das duas maiores economias do planeta, não aconteceu. Tudo somado, o vigor de dois terços da pauta de exportações brasileira e o fôlego da indústria estão garantidos este ano”, festeja Carlos Thadeu.
Nessa toada mais tranqüila, o BC da “Era Meirelles”, reforçado por demonstrações de autonomia prática e prestígio junto a Lula, pode até dar-se ao luxo de ajustes finos que consolem os estruturalistas. Com a experiência de quem foi diretor da Dívida Pública, Carlos Thadeu não se espantaria caso, ainda neste primeiro semestre, o Copom retomasse o ritmo de 0,50 ponto percentual de corte, em pelo menos uma reunião. “O câmbio está rodando abaixo das projeções do modelo, já testa o piso dos R$ 2. Como não há hipótese de controle de capitais ou retirada da isenção das aplicações de não-residentes em títulos da dívida interna, para evitar prejuízos ao foco estratégico de antecipar a conquista do investment grade, o foco de ajuste passa a ser a taxa de juros”, explica.
Timing. E quando viria esta possível mudança? O mais provável seria de maio em diante, quando o IPCA anualizado começaria a se aproximar do piso da meta, pela diluição de pressões sazonais características do início do ano, como as tarifas de ônibus urbanos e as mensalidades escolares. Sem alarde, e sem cobranças públicas que resultaram no oposto, a radicalização da ortodoxia do BC, o ministro Mantega poderia ver atendido seu pleito de um foco maior no centro da meta, hoje de 4,5% ao ano.
“O dólar muito baixo pressiona os preços dos tradeables, os produtos possíveis de serem importados. Com um IPCA abaixo dos 3% ao ano, aumenta a margem do BC para cortar a taxa de juros sem pressionar demais a inflação. E a autoridade monetária, por mais zelosa de sua autonomia, sabe que não pode administrar a taxa de juros ignorando os efeitos sobre as contas externas. Para afastar de vez o risco de uma deterioração da balança comercial a médio prazo, no rastro de um crescimento das importações, sem recorrer a medidas artificiais como um aumento de tarifas alfandegárias, o mais lógico é permitir uma flutuação maior do câmbio, e isso é feito cortando os juros mais rápido”,acredita Thadeu.
A conjuntura internacional, nessa hipótese, faria o que a política nacional não conseguiu, um ajuste de trajetória no BC. Nada brusco, mas o suficiente para esvaziar o que sobra de munição para o “fogo amigo”.
Sobre o primado da gestão econômica na avaliação do desempenho dos governos, por mais trapalhadas que se acumulem em outras áreas, vale o mantra de James Carville, mago do marketing político americano.”É a economia, estúpido”, recitava, sempre que podia, para um atento e aplicado governador do distante Arkansas que aspirava à presidência da República mais poderosa do mundo, Bill Clinton. Carville veio ao Brasil mais de uma vez a convite dos tucanos. Suas lições, na hipótese de um BC fortalecido adotar medidas ao gosto dos derrotados, parecerão ter sido aprendidas com mais afinco pela equipe de Lula que pelos partidários de FHC.