O Banco Central não tem uma meta explícita de juro real, nem um piso claramente definido para a Selic, taxa básica da economia. Mesmo assim, a ata da última reunião e os dois votos por um corte de apenas 0,25 ponto percentual nos juros deixam claro a iminência de um esgotamento do quadro atual.
O Banco Central não tem uma meta explícita de juro real, nem um piso claramente definido para a Selic, taxa básica da economia. Mesmo assim, a ata da última reunião e os dois votos por um corte de apenas 0,25 ponto percentual nos juros deixam claro a iminência de um esgotamento do quadro atual. Com a habilidade política que demonstrou no primeiro mandato de Lula, Henrique Meirelles está diante do desafio de preservar a autonomia operacional que a autoridade monetária conquistou, em um ambiente de contestação crescente.
Técnicos e diretores do BC de formação mais ortodoxa não escondem o desconforto com os revezes da Fazenda na definição da política fiscal. Aceitável para o ministro Guido Mantega, a fórmula em gestação para o controle dos gastos com o funcionalismo, de reajustes pelo IPCA mais um adicional vinculado ao Produto Interno Bruto, é considerada uma recaída na indexação. A expansão predeterminada dos salários, ainda que em bases mais modestas que a deste ano, exige no receituário do BC uma contrapartida inevitável, a contração de outras fontes da demanda.
No primeiro semestre, o risco de problemas mais agudos parece fora do horizonte. As tarifas indexadas serão mais uma vez um fator baixista, já que a inflação do ano passado, que lhes serve de base, ficou no limite inferior da meta. O câmbio valorizado, ao baratear as importações, segue como indutor de preços mais baixos para alimentos e tradeables (produtos negociáveis no mercado externo, como as commodities). Nem a expansão generosa do mínimo soa capaz de perturbar esse cenário róseo no curtíssimo prazo.
A continuidade do ingresso forte de recursos externos e a acumulação prevista de reservas, contudo, obrigam a uma administração atenta da oferta de moeda. Não soa absurdo, a esta altura, que o país supere US$ 100 bilhões em reservas cambiais ainda este ano. Para que isso não se transforme em um excesso na base monetária, o BC terá de emitir títulos que compensem o aplicador, evitando a troca imediata por moeda nacional. Os dados em poder do BC indicam agregados monetários incompatíveis com a baixa inflação atual. Recorrendo a uma imagem sísmica, em voga por conta do trágico acidente no Metrô de São Paulo, o crescimento da base monetária ampliada (dinheiro em poder do público + reservas dos bancos + títulos de liquidez imediata) é um dos poucos sinais disponíveis para antecipar-se a um desabamento. No caso, a perda de controle sobre a inflação.
Os empresários e diretores de bancos que conversam regularmente com o presidente saem impressionados com a firmeza de suas convicções quanto à necessidade de combater a inflação. Não há o mesmo entusiasmo quanto ao possível vínculo que ele estabeleça entre decisões distributivistas, como o aumento do mínimo ou a correção da tabela do Imposto de Renda da Pessoa Física, e a realimentação inflacionária. Ou entre a manutenção dos gastos públicos em patamar elevado e a dificuldade de estimular o investimento privado.
Afastado Antonio Palocci, no desfecho de uma longa crise envolvendo denúncias contra antigos colaboradores da Prefeitura de Ribeirão Preto que resultou na quebra do sigilo bancário do caseiro Francenildo dos Santos, a equipe econômica perdeu sua voz mais influente junto ao presidente Lula. Paulo Bernardo comunga do receituário ortodoxo, tem cancha política, mas nem de longe o prestígio de Palocci. Henrique Meirelles isolou-se então no bunker do BC, tanto que as reuniões entre as equipes da Fazenda e da instituição responsável pela política monetária foram suspensas por seis meses, e só retomadas na última terça-feira.
Mudanças
Melhor para Meirelles, que ficou livre de explicitar suas divergências com Guido Mantega, que não são poucas. O ministro da Fazenda não cobra mudanças explícitas de receita e cozinheiro no BC, como a dupla gaúcha Dilma Rousseff e Tarso Genro ou a dobradinha paulista José Dirceu e Ricardo Berzoini. Opta pela discrição, mas nem por isso teria deixado de defender junto ao presidente maior ousadia na política monetária, mesmo sem estar disposto a patrocinar o contraponto aviado pela maioria dos economistas, de um forte aperto na política fiscal e da apresentação de uma nova rodada de cortes nos benefícios da Previdência.
Preocupado com o impacto das concessões recentes na demanda, o BC deverá desacelerar o ritmo de corte da taxa de juros logo que as condições políticas permitirem, talvez já na reunião do final de fevereiro, não por acaso logo depois da Quarta-feira de Cinzas e da eleição das mesas da Câmara e do Senado, marcos inaugurais do segundo mandato de Lula.
O presidente reafirmou sempre que possível, quando testado, a autonomia prática do BC, embora recusasse o mais das vezes qualquer compromisso formal com isso. No final deste semestre, o mais tardar no início do próximo, com a taxa real de juros próxima dos 8% que as duvidosas alquimias ortodoxas fixam como taxa de equilíbrio no país, esse acerto informal deverá viver seu teste definitivo. Sob a torcida geral de empresários e banqueiros, lulistas ou nem tanto, de que uma crise externa não antecipe esse confronto. Afinal, para adiar a hora da verdade, cogita-se até um espaçamento da reunião do Comitê de Política Monetária de 45 para 60 ou até 90 dias, de forma a esvaziar um pouco a especulação que cerca cada um desses encontros.